quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O vagão dos extremos


Entrei no metrô e todos começaram a aplaudir.
Delírio: por que estão me aplaudindo?
Realidade: não era para mim.
Os aplausos eram para três rapazes, músicos.
Estavam todos tão felizes, os rapazes instrumentistas e os demais passageiros.
Alguns até dançavam.
Encostei num canto e comecei a ler meu livro


Enquanto lia Julie Powell descrever como se extrair tutano de um osso de boi, a música ao fundo carregava de dramaticidade o momento e um nó na minha garganta se formava. Olhei pra aqueles meninos e fiquei com raiva,  pensando que o ambiente composto pela música de fundo e a leitura sobre o tutano provocariam lágrimas. Minhas lágrimas. Não que isso nunca tenha me acontecido antes (chorar em transportes públicos), mas sempre é uma experiência pouco edificante. 

Para não pairar dúvidas sobre a minha sanidade, dado que a descrição de como extrair tutano de um osso quase me fez chorar, vou transcrever o trecho para provar que tutano pode fazer chorar:

"O barulho da raspagem era terrível - como se eu  pudesse senti-lo nos meus próprios ossos. Uma metáfora relativa a exploradores das profundezas selvagens da África não parece fora de propósito aqui - havia um traço de O coração das trevas em toda essa situação. Afinal de contas, existe profundeza maior do que o interior de um osso? Ele é o centro do centro das coisas. Se tutano fosse uma formação geológica, ele seria o magma sob a terra. Se fosse uma planta, ele seria um musgo delicado que cresce apenas nos rochedos mais altos do monte Everest, com flores brancas muito pequenas durante três dias na primavera nepalesa. Se fosse uma memória, ele seria sua primeira, a mais dolorosa e reprimida, aquela que fez de você o que você é."

Foi isso que me fez engasgar. O convite a vasculhar meu arquivo de memórias à procura daquela que fosse a mais dolorosa e reprimida. Enquanto eu fazia isso, me perdendo em devaneios e quase soluçando em pleno metrô, os outros passageiros, embriagados pela música, buscavam trocados em seus bolsos e presenteavam os rapazes.

Eis que durante um pequeníssimo intervalo, entre uma música e outra, um senhor e um menino entraram no vagão. O senhor, de voz imponente, começou a descrever suas mazelas, iniciando por uma cegueira recém adquirida. Vi um dos rapazes músicos cutucar outro e inclinar a cabeça em direção ao senhor. Rapidamente, antes que o sinal de fechar as portas apitasse, os três saíram correndo daquele vagão e entraram em outro. Foram tocar suas músicas para outro público, não queriam competir com o senhor cego. Me lembrei, imediatamente, de "Circular", curta de Clarisse Vianna que conta o embate entre um vendedor de canetas, um vendedor de balas, um cego e um assaltante  na disputa pelo público de um ônibus.

Circular
Enquanto o senhor enumerava suas doenças quem iam de pressão alta a esquizofrenia, os sorrisos iam dando lugar a olhares para os próprios sapatos. Parecia haver um certo constrangimento pelos momentos de alegria vividos até segundos atrás. E creio que, sem saber do que acontecia naquele mesmo vagão antes dele entrar, aquele senhor conseguiu capitalizar involuntariamente em cima da situação. Suspeito que algumas daquelas pessoas ofereceram trocados ao senhor como impelidas por uma obrigação em fazer pela tristeza o mesmo que haviam feito pela alegria. E assim, quase o vagão inteiro encheu os bolsos do senhor de moedas e notas.

Dentre todas as doenças que percorreram o vagão naquele dia, eu, que andava suscetível pelo tutano, fantasiei sobre uma. Aquele senhor nos contou que tinha um coração grande e que, por ser tão grande, se mexessem nele, ele morreria. Fiquei pensando que isso era até poético: ter um coração tão grande e tão ocupado, que se alguém tentasse mexer nele, ele explodiria, como uma bomba. Poético e trágico ao mesmo tempo.

Acredito que aquele senhor não compartilhava do meu delírio, e não devia achar nem um pouco bonito ter um coração grande, um coração bomba.

E assim, a Cinelândia chegou, eu desci, e o metrô que carregava um vagão de extremos seguiu seu caminho.




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